No fundo, acho que gostei de “Deixa ela entrar”. Tenho pavor de filmes de terror e dessa vez não foi diferente: a visão da menina monstro principal me dava arrepios; o horror e o susto de ser violentamente atacado quando menos se espera; as mortes hediondas, lentas e torturantes, litros de sangue se esvaindo inutilmente; e ainda o desprazer da figura ser parecida fisicamente comigo, olhos grandes e fundos, cabelos escuros armados. Resultado: a noite que era pra ser de sono virou uma longa jornada quase sem vitória. Mas quando o dia finalmente chegou com um pouco de racionalidade (ou seja, aquela deliciosa impressão ilusória de que está tudo sob controle) senti que o terror era só uma introdução e que o aprendizado a se obter dali não era pouco.
Eli (olha o nome, na trave do meu, ai) é uma menina vampira. Mas o filme é bem trabalhado nas sutilezas e sensibilidade, daí sua caracterização não se valer dos clichês desse tipo de personagem. Eli vai se construindo diante dos nossos olhos, que a princípio se afeiçoam à sua aparência frágil com potencial macabro, até que a segunda parte dessa personalidade intrigante venha finalmente à tona. A menina tem “doze anos há muito tempo”, sua fraqueza é superficial, ela é completamente consciente de seus atos e põe sua necessidade de se satisfazer acima de qualquer coisa.
Sua sabedoria a leva a se aproximar de Oskar, que tem doze anos reais e está moralmente muito debilitado com a separação de seus pais e a zombaria dos garotos da escola. Logo, a estranha e noturna Eli se torna sua única amiga e ele, seu total dependente afetivo.
“Deixa ela entrar” é o nome pois deve-se autorizar a entrada de Eli na casa, não sendo convidada e invadindo o espaço, ela morre. Daí a ideia de responsabilidade que o sujeito que deixa ela entrar deve ter sobre o que é desconhecido, sobre sua paixão, sobre seu medo e seu sentimento – coisas que o permissivo Oskar ainda é incapaz de medir e Eli bem o sabe. A vampira trabalha pra transformar a fragilidade temporária do menino em permanente.
O terror e as mortes horríveis do filme servem de mera ilustração pro perigo real do mal e da manipulação. Eli induz Oskar racionalmente a escolher se vingar e a ser violento e depois o deixa em um caminho sem volta: ele terá sempre que ser assim se amá-la, pois ela vive por sangue.
Apesar de tudo, o vampirismo ainda é opção: uma das vítimas sobreviventes de Eli se torna vampira, mas no real altruísmo, a mulher abdica à vida, sabendo que sua condição é inescapável, trará o mal e o constante descarte de pessoas.
Eli é conscientemente má, incapaz de amar, manipuladora, experiente; e seu apaixonado lhe faz contraste: Oskar é indefinido, sem objetivos, é capaz de amor verdadeiro mas é tão inconsciente de si mesmo que não teve responsabilidade na escolha do ser amado. A maldade de Eli está em se aproveitar da fraqueza de seu protegido pra lhe cobrar favores futuros, como lhe arranjar vítimas, acobertar os crimes, etc.
A maioria das críticas sobre o filme o classifica como história romântica com vampiros, e o compara (para exaltá-lo) com "Crepúsculo". À primeira vista, não me ocorreu tal ideia, a atmosfera era de tamanho peso e terror que nem lembrei da cafonice desses filmes de vampiros teen, pensei que Eli poderia ser uma assassina mesmo, um animal, etc. Mas a metáfora de vampira é ótima: um semi-humano, uma alma penada, um morto, sem sangue nas veias, que suga a vitalidade de quem é humano; se alimenta de seus erros, de seus pontos fracos - como o apaixonamento inconsequente de Oskar, por exemplo. O mal acabou com o que havia de humano em Eli, para ela nada está acima de sua satisfação pessoal, tudo pode ser corrompido, não há nada interditado ou que mereça sua reverência.
Eu, que mesmo parecendo o monstro abandonei o mal esses tempos pois o crime não compensa, digo: o estado único da paixão é o início das delícias e dos perigos do envolvimento, é a porta de entrada, mas o amor verdadeiro cobra a necessidade de sua superação para que todos possam viver com alguma saúde mental e civilidade.
E enfim, pode ser minha visão viciada, mas todos os filmes que vi na mostra do Sesc falaram dos apaixonados que cegamente acreditam numa suposta nobreza pura em seu sentimento e fazem o mal, ou mesmo besteiras pra se arrepender. “500 dias com ela” fala de forma divertida sobre como se apaixonar te faz achar imbecilmente que a outra pessoa tem a obrigação única de te fazer feliz mesmo que você não valha a pena, “Ervas daninhas” mostra a inconseqüência do apaixonamento como desencadeadora dos fatos mais nonsense da vida, “Antichrist” fala sobre os perigos do auto-desconhecimento e do desconhecimento do parceiro no âmbito da profunda intimidade que atinge um relacionamento, e “Se nada mais der certo” discute os efeitos que a falta de responsabilidade sobre uma visão de mundo pessimista e enfraquecedora dos sujeitos aliada à manipulação das paixões pode trazer à vida e às identidades das pessoas. O desafio do homem atual ainda é assumir a responsabilidade pelo que parece incontrolável, pois toda a realidade é construída e construível, e a existência de alguma incoerência sempre vem fazer cobranças às nossas consciências.
Sim, tá meio difícil esses tempo de superar o tom Berater e a auto-ajuda burguezona, mas ponho o texto aí como documento da história das ideias de elis piera rosa nesse seu estranho ano de 2010, pra isso pelo menos serve. Claro, pra variar tava escrevendo um artigo com prazo estourando e parei pra fazer essa resenha; graças a deus que já falei de todos os filmes assim não corro o risco de perder mais tempo escrevendo sobre cada um, só pra procrastinar. E viva a escrita! Escrever é minha casa mesmo e o filho pródigo aqui a ela retorna amém.