quinta-feira, 19 de abril de 2012

Tédio

S. Kracauer


Pessoas que possuem ainda tempo para o tédio e, no entanto, não se entediam são, decerto, tão entediantes como as outras que não chegam a se entediar. Para aqueles a quem o si próprio desapareceu, o si próprio cuja presença, particularmente neste mundo tão administrado, estivesse necessariamente obrigada a demorar um pouco sem objetivo, seja aqui ou ali.

A maioria das pessoas, certamente, não possui tempo para o ócio. Elas se ocupam com o ganha-pão, exaurindo todas as energias, simplesmente para suprir o estritamente necessário. Para tornar esta obrigação fatigante minimamente tolerável, inventaram a ética do trabalho para dissimular moralmente sua ocupação e obter assim para si mesmos uma certa satisfação moral. Seria um exagero afirmar que o orgulho em se considerar um ser ético dissiparia todo tipo de tédio; mas o tédio vulgar que passa pela labuta diária não entra em consideração já que esta nem é fatal e nem desperta para uma nova vida, mas simplesmente expressa uma insatisfação, que desapareceria num instante caso fosse oferecida uma atividade agradável, sancionada moralmente. Apesar disso, as pessoas, a quem o cumprimento do dever provoca bocejos, são menos entediadas do que aquelas que executam suas ocupações por inclinação. Recentemente, estes tipos infelizes são empurrados para o fundo, forçados rudemente, até que não saibam mais onde está sua cabeça, e o tédio radical, extraordinário, que poderia reuni-los novamente com suas cabeças, permanece eternamente distante para eles.

Não há ninguém, no entanto, que não disponha de nenhum ócio. O escritório não é um asilo permanente e os domingos são uma instituição. Em princípio, durantes estas belas horas de tempo livre cada um teria a oportunidade de se reanimar até um verdadeiro tédio. Mas ainda que alguém não quisesse fazer nada, o fato é que as coisas são feitas para ele: o mundo se ocupa de que alguém não chegue a si. E mesmo se não estiver interessado neste, o mundo mesmo é muito interessado em que se encontre tranquilidade para verdadeiramente se entediar com o mundo, como este merece ao final.

Perambula-se à noite pelas ruas, repleto de uma insatisfação da qual a plenitude pudesse germinar. Palavras iluminadas deslizam pelos tetos, e logo se é banido de seu próprio vazio em um estranho anúncio. O corpo lança raízes no asfalto, e, junto com as revelações iluminadoras, o espírito, que não é mais o nosso espírito, vaga sem cessar na noite. Se apenas fosse permitido desaparecer! Mas como o Pésago saltitando em um carrossel, este espírito deve girar em círculo, não pode se cansar, louva-se para o alto céu a fama de um licor e elogia o melhor cigarro de cinco centavos. Alguma mágica incita o espírito com mil lâmpadas elétricas, das quais este se constitui e se reconstitui a si próprio em frases resplandecentes.

Se este espírito retorna, por acaso, a algum ponto, logo se permite a si próprio ser girado por uma manivela multiforme num cinema. Fica de cócoras como um falso chinês, num falso bar de ópio, transforma-se em um cão adestrado que com performances espertas e ridículas muito agrada a uma diva do cinema, junta-se a isto uma tempestade no cume das montanhas, e torna-se, ao mesmo tempo, um artista de circo e um leão. Como poderia resistir a estas metamorfoses? Os cartazes tomam de um golpe o espaço vazio que o espírito propriamente não penetraria, o arrastam diante de uma tela que está tão despida como um palácio vazio, e quando as imagens surgem uma depois da outra não há mais nada no mundo além de suas evanescências. Esquece-se de si mesmo em um processo de basbaqueamento, e o grande buraco escuro é animado com a aparência de uma vida que não pertence a ninguém e que exaure a todos.

Também o rádio vaporiza a essência, mesmo antes de eles terem interceptado uma única transmissão. Desde que as pessoas se viram compelidas pela radiodifusão, se encontram em uma situação de recepção permanente sempre prenhe com Londres, torre Eiffel e Berlim. Quem gostaria de resistir ao convite destes carinhosos fones de ouvido? Brilham nos salões e se entrelaçam ao redor das cabeças todos por si mesmos; e em vez de suscitar uma conversa cultivada, que, certamente, pode ser um tédio, torna-se uma praça de jogos dos barulhos do mundo, não obstante seu próprio potencial de tédio objetivo não conceda nem um pouco do modesto direito ao tédio pessoal. Mudo e sem vida sentam-se as pessoas uma ao lado da outra como se suas almas vagassem por outro lugar distante; mas as almas não vagam de acordo com suas preferências, são agitadas por um turbilhão de notícias, e logo ninguém mais sabe quem é a caça e quem é o caçador. Mesmo num café, lá, onde se ronca junto como um ouriço e que gostaria de tornar interna sua nulidade, um significativo autofalante extermina qualquer vestígio da existência privada. Seus anúncios reinam no espaço das pausas do concerto e o garçom escutando rejeita indignado a impertinência do pedido para livrar-se deste arremedo de gramofone.

Enquanto se padece de tal destino antenado, os cinco continentes tornam-se sempre cada vez mais próximos. Na verdade não somos nós que nos expandimos por eles, não muito mais suas culturas que tomam posse de nós no imperialismo sem fronteiras. É como se tivesse um desses sonhos sonhados com estômago vazio. Um bola minúscula rola de bem longe até você, expandindo-se em uma grande tomada e urrando sobre você; você não pode detê-la, escapar dela também não, permanece aguilhoado como um bonequinho impotente que é arrastado por um gigante colossal e expira em seu âmbito. Fugir é impossível. O imbroglio chinês deve ser discretamente desativado, se está seguro de ser saqueado por um lutador de boxe americano adversário, e o ocidente permanece onipresente, admitindo-se ou não. Todos os acontecimentos históricos neste planeta – não apenas os atuais mas também os acontecimentos do passado, cujo amor pela vida não tem pudor – possui apenas um desejo: agendar um encontro onde estes supõem que estejamos presentes. Mas o senhorio não se encontra em seus aposentos, viajou e não pode ser localizado, cedendo já há algum tempo os quartos vazios para a surprise party que ocupa os aposentos, pretendendo tornar-se senhor.

Mas o que ocorre, no entanto, quando não se permite ser perseguido como uma presa de caçador? Então o tédio torna-se a única ocupação adequada, na medida em que provê uma espécie de garantia, por assim dizer, para que se tenha ainda controle sobre sua própria existência. Se não se entediasse nunca, provavelmente não estaria presente de modo algum e seria apenas meramente mais um objeto de tédio, como foi dito no início, que esplandece sobre os telhados ou numa bobina de filme. Mas se está presente, não teria outra chance a não ser entediar-se pelo estrondo ubíquo que não permite que se possa existir, e, ao mesmo tempo, para encontrar a si entediando-se por existir neste.

No melhor dos casos, em uma tarde ensolarada quando todos estão fora de casa, se permaneceria no saguão de uma estação de trem, ou melhor ainda: ficar-se-ia em casa, fecharia as cortinas e entregar-se-ia a seu tédio deitado no sofá. Anuviado de tristeza, brincando assim com ideias que se tornam respeitáveis no processo, considerando vários projetos, sem fundamento, supostamente sérios. Eventualmente se contenta em nada fazer a não ser ficar consigo e não saber de nada sobre o que se deveria fazer – de modo simpático, tocado simplesmente por um gafanhoto de vidro sobre o tampo da mesa, que não pode saltar, pois é feito de vidro, e por meio do absurdo de um cacto que nada pensa sobre a sua própria extravagância. Frívolo como esta criatura decorativa, abriga-se ainda apenas em uma inquietação interior sem propósito, uma ânsia que é repelida e o fastio sobre o que é sem realmente ser.

Se, no entanto, tem paciência, aquela paciência que pertence ao tédio legítimo, experimenta-se bem-aventuranças que quase não são deste mundo. Aparece uma paisagem na qual pavões coloridos passeiam pomposamente e imagens de pessoas com alma enchem a visão – sua própria alma dilata-se igualmente e você expressa extasiado o que sempre lhe faltou: uma grande paixão. Fosse esta paixão – trêmula como um cometa – descendente, fosse esta a envolver você, aos outros e ao mundo – ah, o tédio chegaria a um final e tudo o que existe seria...

No entanto as pessoas permanecem como imagens distantes e no horizonte se renuncia a grande paixão. E no tédio, que se recusa a retroceder, se choca com bagatelas, que são tão entediantes como esta.

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Por que estudamos?


Rubens Rodrigues Filho


Estudar: esse costume, essa prática, esse vício. Por que afinal temos de sentir-nos atraídos por isso, que parece ser uma espécie de procura, uma busca, uma quête? Que tipo de imagem governa esse ato? O modelo de um escavar? Desenterrar? Ou então: perseguir? Seguir rastros? Ou: “juntar coisa com coisa”? “Ligar os fatos”? Consequentemente, montar um quebra-cabeças, encaixar peças?

Vários tipos de ocupação, entretenimentos variados. Charadas. Passatempos. Jogos de concentração para distrair. Introduzir um sentido no aleatório ou então supor que esse sentido já está lá posto, oculto, e que então alguém o busque. Esconde-esconde. A verdade que se esconde, o afeto que se encerra (“se esconde” no sentido de “está contido”). Reservas se significação. O que “nos reserva” um texto.

Uma mitologia branca (Derrida) em todas essas imagens, analogias. Orientar-nos por um desses modelos, seguir um desses esquemas como se fosse um mapa. Proceder segundo um imaginário escolhido, determinante e arbitrário. Também uma espécie de cálculo com signos, na relação com o texto (chamar isso de “método”, metà hodós?)

Por exemplo, os pares de conceitos, entredefinindo-se por oposição dois a dois: “mecânico” versus “dinâmico”. As substituições permitidas, por equação. Permutações. Jogos lógicos. “Lógica” versus “metafísica”. Notar que o sentido imediato não é tranquilo, alçapões de sentido. Mesmo para uma relação descritiva. Um texto é “ação comunicativa” (Habermas)?

As contaminações, o hábito de referir um determinado signo a um contexto específico e ver nesse signo sempre as marcas desse mesmo contexto. O “realismo” da querela dos universais: na Idade Média era o contrário de... “nominalismo”.

Quanto mais profundamente se medita, acreditando mergulhar numa profundez ideal, mais se perde pé nessa superfície trabalhada por “efeitos de sentido” – a palavra na página, a agilidade desses deslizamentos – mas então será sempre com os poderes do imaginário que essas forças todas estarão jogando? Surge então uma necessidade, não só de pensar – “energia” mental idealista – mas de escrever: pensar com a ponta da caneta, diretamente no papel, sucessão de minúsculos atinhos, retas, curvas, pingos, nas fibras materialistas que sustentam uma a uma esse mover-se, o querer real. Caberia, teria cabimento? Atos de percepção, qualidade perceptiva. Pergunta: – Que sentido tal palavra “pode” ter nesse texto?

Psicologia de um intérprete que se pretendesse “fiel”: – Minhas articulações tornaram o texto de Novalis (fragmental) coerente?Ou sua coerência possibilitou a articulação? Esta segunda opinião, objetivista, realista, é sem dúvida a mais atraente, faz de mim um observador atento, mas neutro, e garante a firmeza de minhas afirmações: eu não tinha escolha, afinal, já que objetivamente é assim. Nem é meu ponto de vista, sempre sujeito à revisão, nem mesmo é uma tese que pretendesse demonstrar meus enunciados a serviço dessa “causa”, subordinados a esse desejo. Entendam, pois, meus proferimentos como obedientes ao feitio do seu próprio objeto, curvados ao capricho dele, que é anterior a mim e verdadeiro até na minha ausência. Digo que é assim porque assim é. Detestaria que fosse porque o digo, pois não quero comandar. Fazer minha vontade, no caso, seria o modo mais seguro de contrariar-me.

Uma interpelação do texto ao leitor. O texto em seu leito, deitado. Atividade só por parte do outro, que lhe põe o olho em cima e vai dotando de sentido aquelas combinações de letras (ao todo 24 sinais, separados por espaços), pressupondo apenas a condição de que esses sinais já lhe sejam conhecidos: a alfabetização. Em situações de fala, aparentemente, cabe passividade ao ouvinte, que no entanto tem a mesma função que o leitor: na qualidade de destinatário, receptivo.

Como pode o texto, o fraco, desprovido de entonação, gesticulação, presença, deixar de desenvolver as virtudes reativas descritas por Nietzsche? Chamar sem voz? Ganhar no berro, em silêncio? Paraplégico, imóvel, depende das virtudes do outro, daquele que se define pelo ato mesmo de atender-lhe, que se chama leitor por ser quem lê. O sinal “atrai” a vista, “prende” o olhar. Mas por que meios, se ele é sinal, inerte? O leitor talvez acredite estar com ele na mesma relação de neutralidade – de observação – em que se põe perante os fatos da natureza. Julga-o passivo, disponível a seu dispor, e por sua vez dispõe-se a obedecer-lhe. Perseguidor, converteu-se em seguidor. Trompe-l'oeil? Image mise em abîme? “Isso” de ler e escrever.

Novalis, que foi historicamente aquele “leitor ativo” solicitado por Fichte, identificou no texto da Wissenschaftslehre uma operação que ele batizou de innere Wunder (“milagre interno”) e descreveu-a assim: – “Fichte, com palavras escritas, com fórmulas, com combinações, opera milagres internos.” – Será que o romantismo há de retornar sempre?


In:_____, Ensaios de filosofia ilustrada. São Paulo: Iluminuras, 2004.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

tradução - Indiferença na eternidade


Em comparação às famílias catastróficas dos novos romances, os Buddenbrooks irradiavam alegria
Todas as famílias felizes se parecem, e, por isso, ninguém escreve sobre elas. Se Os Buddenbrooks não tivessem interessado a nenhum leitor, se tivessem aumentado sua riqueza cada vez mais, se Ana Karenina tivesse ficado com seu Karenin, se Leon Tolstoi nunca tivesse formulado aquelas belas frases, então cada família infeliz seria infeliz de um modo muito especial e bem peculiar. Assim, Tolstoi funda a tradição do romance moderno familiar, ao qual se ligam os dois debutes nesse outono – que, particularmente por isso, são recomendáveis, pois indicam uma visão jovem sobre a imagem atual da família.
A expressão “desordem” é, para as famílias catastróficas apresentadas, em si, ainda um pouco atenuante. Os pais de Franziska em Falscher Frühling (ainda não traduzido em português, título literal provável: Falsa Primavera) são daqueles que não se deseja pra ninguém: o pai Lothar, um homem boêmio de teatro, bêbado, maledicente e promíscuo. A mãe Emilie, uma limpinha mulher que fez carreira profissional, e troca a mobília do palco pela do lar, bate em retirada de seu casamento para os braços de um pequeno burguês. Não é nenhuma surpresa que a negligenciada Franziska prefira se ficar no Second life à vida real (no romance, o mundo on-line também se faz presente), e desviar das amizades.
Talvez ela deveria conversar com o estudante de medicina Simon, de Vom Atmen unter Wasser (ainda não traduzido em português, título literal provável: Sobre Respirar Embaixo D’Água). Cuja mãe, Anne, está – desde a morte violenta de sua irmã – quase que tão-somente apática, e tenta se suicidar; enquanto seu pai, Jo, como assistente social, prefere se preocupar com os outros. Perante todos esses erros e confusões com o formato de novela das oito, ficamos desejando a volta daquela narrativa de tipo contemplativo do século 19. Naquela época, quatrocentas páginas eram suficientes e perfeitas para quando, como em Stechlin, um velho morre e dois jovens se casam.
Já que, com a erosão das normas burguesas, a catarse também está banida, hoje deve-se acontecer mais eventos na narrativa. A falência da família, que ainda nos Buddenbrooks se estende por mais quatro gerações, realiza-se, hoje, internamente num indivíduo. Nos meses em que Ana Karenina precisou refletir sobre o olhar de Wronskij, Lothar, de Falscher Frühling, colecionava affairs. O suicídio libertador, por outro lado, perdeu sua força literária, desde que a depressão, de longe, começou a ser percebida como fenômeno medicinal. Como o fim solene da vida e de um livro, não se apresenta mais como a solução. Em vez de, como Ana Karenina, se lançar em frente ao trem, os personagens precisam estender sua indiferença por toda a eternidade, num final aberto.
Em sua maioria, as crianças são quem mais sofrem – antes subtraídas discretamente sob a proteção de uma ama, uma vez que elas atrapalhavam o enredo. Simon e Franziska levantam hoje não só a voz, eles procuram um projeto contra àquele estilhaçado dos pais. Iriam eles se cruzar, iriam até se apaixonar, depois ambos sentiriam falta de um relacionamento, que se elevasse sobre o desgaste do dia-a-dia. Este é um desejo mais belo e muito romântico. Soa quase como o século 19.

(Tradução feita por mim e Francine Camelim do artigo "Wursteln in Ewigkeit", de Inge Kutter, publicado na Zeit Campus de janeiro e fevereiro de 2011)

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Texto original
Wursteln in Ewigkeit
Im Vergleich zu den Katastrophensippen der neuen Romane strahlten die Buddenbroks geradezu vor Glück
Alle glücklichen Familien ähneln einander, und deswegen schreibt auch keiner über sie. Die Buddenbrooks hätten keinen Leser interessiert, hätten sie ihren Reichtem beständig gemehrt, und wäre Anna Karenina bei ihrem Karenin geblieben, Lew Tolstoj hätte nie jenen schönen Satz formuliert, demzufolge jede unglückliche Familie auf ihre ganz besondere und einzigartige Weise unglücklich ist. So aber begründete er die Tradition des modernen Familienromans, an die in diesem Herbst gleich zwei Debüts anknüpfen, die vor allem deswegen lesenswert sind, weil sie eine junge Sicht auf das heutige Familienbild zeigen.
Der Ausdruck "zerrüttet" ist für die darin vorgestellten Katastrophensippen noch ziemlich untertrieben. Franziskas Eltern in Falscher Frühling möchte man niemandem wünschen: Vater Lothar, ein abgehalfterter Theatermacher, saufend, fluchend und promisk. Mutter Emilie, die saubere Karrierefrau, von der Bühnen- zur Innenausstattung umgeschwenkt, flieht vor den Eskapaden ihres Gatten in die Arme eines Biedermannes. Kein Wunder, dass sich die vernachlässigte Franziska lieber in Second Life statt im wahren Leben aufhält (im Roman ist die Online-Welt noch in) und um Freundschaften einen Bogen schlägt.
Vielleicht sollte sie sich mit dem Medizinstudenten Simon aus Vom Atmen unter Wasser unterhalten. Dessen Mutter Anne ist seit dem gewaltsamen Tod seiner Schwester fast nur noch apathisch und hat gerade einen Selbstmordversuch unternommen, während sein Vater Jo sich als Sozialarbeiter lieber um andere kümmert. Angesichts dieser Irrungen und Wirrungen vom Format einer Vorabendsoap wünscht man sich die beschauliche Erzählweise des 19. Jahrhunderts zurück. Damals reichte es für vierhundert Seiten noch vollkommen aus, wenn, wie im Stechlin, ein Alter starb und zwei Junge heirateten.
Weil mit der Erosion bürgerlicher Normen auch die Fallhöhe verschwunden ist, muss heute umso mehr passieren. Der Niedergang einer Familie, der sich bei den Buddenbrooks noch über vier Generationen erstreckte, vollzieht sich heute innerhalb einer einzigen. In den Monaten, die Anna Karenina benötigte, um über Wronskijs Blicke nachzudenken, bringt Lothar aus Falscher Frühling gleich mehrere Affären unter. Der Freitod wiederum hat an literarischer Kraft verloren, seit die Depression weithin als medizinisches Phänomen wahrgenommen wird. Als würdevolles Ende von Leben und Buch ist er keine Lösung mehr. Statt sich wie Anna Karenina vor den Zug zu werfen, müssen die Figuren nach dem offenen Schluss bis in alle Ewigkeit weiterwursteln.
Am meisten leiden dabei die Kinder, die früher diskret in der Obhut einer Amme verschwanden, weil sie die Handlung störten. Simon und Franziska erheben heute aber nicht nur die Stimme, sie suchen auch nach einem Gegenentwurf zum elterlichen Scherbenhaufen. Würden sie sich begegnen, sie würden sich vielleicht sogar verlieben, denn beide sehnen sich nach einer Beziehung, die über alle Alltagsreiberei erhaben ist. Das ist ein schöner Wunsch und ein sehr romantischer. Er klingt fast nach 19. Jahrhundert.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Como ser humano


Ver a Alemanha foi um choque. Berço de vários humanismos e de uma arte auto-crítica de nível, o país foi espiritualmente arrasado pela guerra. As maiores qualidades alemãs mal estão nas ruas, na tv, na fala das pessoas. Tudo virou culpa, tentativa falsa de apaziguamento, desconforto estranho com o estrangeiro ou o diferente: deixá-lo no limbo do silêncio. A globalização mal chegou ou é muito localizada, intercâmbio só entre iguais. Ou tudo virou um imenso Estados Unidos, com consumo desenfreado de produtos todos iguais pra disfarçar a História. O sentimento injusto de sequestro da História no ar que se respira. Não seqüestro, mas um direcionamento violento, que não deixa espaço pra nada conotativo.

Voltar pro Brasil foi estar ineditamente perdida, pensar em desistir de um caminho iniciado há sete anos. Mas, felizmente, tive a oportunidade de ver algo que me salvou de mim.

Superficial ou profundamente, Werner Herzog poderia ter nascido em qualquer país. Seus temas são o homem, a natureza, o sonho, as relações. Não teve educação formal pra profissão, mas traz alguns bons valores de outras filosofias alemãs, desenha entre si e elas um traço de continuidade espontâneo.

Há o humanamente construído, o social, e o natural. Os dois dizem respeito ao homem e às suas possibilidades, mas é realmente ruim saber que há um esforço do mercado em nos tornar consumidores, homens com traços específicos de socialidade, apenas. Naturalizar o social e estranhar as tempestades, temer a terra, o desconforto, fazer do corpo casa pra somente prazeres temporários, simplificar, banalizar o humano na vida, fazê-lo vendável e saciável com bobagens.

Herzog, como seus personagens, se pauta em fortes questões existenciais. Como manter a integridade de um indivíduo, suas aspirações românticas (que apesar de serem, muitas vezes, irrealizáveis, mantém o mínimo de fé e ligação à vida), sua sensibilidade ao real e à dificuldade sem recorrer à cafonice dos livros de auto-ajuda, mensagens de powerpoint, fanatismo religioso, psicólogos, anti-depressivos, jogatina, novelas, drogas, pornografia, jogos de futebol e promiscuidade? Como alimentar a autonomia e autenticidade individual e não a ansiedade e as carências?

Não há resposta. Herzog estamenta a vida como luta infinda, solitária, titânica e inútil pela dignidade; uma vez que somos oprimidos e limitados por imagens midiáticas kitsch e pela venda de nossa capacidade (na maioria das vezes) somente prática de trabalho. A revolta titânica contra forças enormes e ideologias imprecisas é ridícula, mas é a única coisa a se fazer.

Herzog mostra que o sonho burguês de vencer na vida e merecer a atenção do outro é de todos: cegos, surdos, anões, soldados de segunda classe, reféns seculares de cavernas, ursos, astronautas frustrados – a busca por afeto e reconhecimento ainda é mais forte e universal do que o status financeiro ou a pulsão pelo consumo.

O mundo se tornou muito complexo, milhares de modos de vida diferentes foram descobertos, é injusto e anacrônico que um eurocentrismo ou o consumismo sejam a medida para todas as coisas: “nossa iconografia [a que nos bombardeia a mídia e propaganda] é pobre para nosso tempo”, diz Herzog. Assim, o diretor é igualmente agressivo ao apresentar imagens de expedições espaciais acompanhadas por músicas tribais como arte, ou homens que abdicam de seu conforto por um sonho/impulso aparentemente bobo e inexplicável – nossa sensibilidade com o verdadeiramente humano anda fraca.

Minhas ideias também andam embasadas num subtexto de fim da guerra fria, luta de valores antigos europeus (comunismo) com os “novos” estadunidenses (o predomínio da técnica, velocidade, eficiência). O último ganhou, mas os humanos ainda insistem no humanismo, em ter sentimentos como amor ou tristeza, em sonhar, em doar. Se alguma ordem econômica/social se aproximar disso e não podá-lo, talvez teria algum sucesso.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Muito tempo em pouco tempo e em pouco espaço



A história é muito importante para a Alemanha. Esse país centro de uma Europa estranha e gelada, de milhares de povos e línguas diferentes por metro quadrado, constantes embates e constante medo de que seu povo formado por deus vá ser expulso da Terra pelos homens, a rejeição e o consequente extermínio em massa.

Ou a dura necessidade de adaptação, apreensão dos signos novos, como a alegre, vazia, luxuosa e fácil cultura americana – uma obrigação após a segunda guerra. O povo atomista tendo que ruminar uma noção de massificação, que sempre lhe fora inexistente. Isso resulta na carinha de MM’s mais gordurosa e sofrida que existe. Ou numa juventude socialista apática e pálida, só coberta das vistosas indumentárias dos anos 50, como numa imitação dos filmes de Hollywood – estes sim, onde os atos e as boas intenções produzem algum efeito no mundo e são imediatamente recompensados.

“Se não neste tempo” apresenta a visão microscópica dos pintores alemães sobre os efeitos e influências vividas pelo país ao fim do século XX. A fotografia, a história em quadrinhos, a propaganda, o abstracionismo, as cores neon, a arquitetura, o figurativismo estão entre as inúmeras variações possíveis para a pintura e a expressão do povo sobrevivente a um ainda não findo assédio moral de todo o resto do mundo à sua identidade. A felicidade tão certa da queda do muro se transforma em morbidez misteriosa: em “Phienox”, Daniel Richter (que já inverte o alfa e o ômega no título) transforma os alegres jovens do novembro de 1989 em figuras fantasmagóricas flourescentes, transportando um corpo diferente a um novo barco, numa atitude nada clara, automática, bondosa ou natural. Eberhard Havekost estratifica um eterno insolúvel segredo na figurativização de dois personagens com os rostos cobertos pelos quadriculados de reportagens investigativas; as novas esfinges.

Chegar perto dos quadros e ver as pinceladas ou o spray, é como ter os artistas em presença, visualizar seus minúsculos defeitos que dão num todo perfeito.

Viver é mesmo imprevisível pela eterna exibição variada de signos que inspiram à vida ou à morte, misturando ambos num total espúrio cuja pureza é também a adulteração; ou a graça da vida é a morte.

Essa maravilha toda contrasta com a exposição no piso superior, sobre o romantismo: quadros de David, citações de Goethe, Novalis, Herder, Rousseau, a individualidade e o entusiasmo. Sinceramente não sei realizar a ligação entre essa força que se fazia tão positiva, no século XVIII, e a heterogênea era moderna; mas ela está lá.

Enfim, vão lá ver como a guerra e a resistência não acabaram, mas passaram a existir por segundos e centímetros.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Andy Warhol, vai tomar no cu


E a vida ataca cruelmente, de novo, quando você menos espera. Que tal tomar um soco na cara pra desfigurar o rosto e doer por uns bons meses? Então.

Andy Warhol é lacônico como a era quando nasceu, como a era que ele produziu. A força impactante da promessa vazia da propaganda, que sempre caímos porque somos pegos pelo nosso pior lado, nossa carência, nossa necessidade. A culpa posterior pelo que achávamos inconsciência e era a expressão do nosso desejo mais real, íntimo e sujo, aquele “eu” que não conhecíamos e é mais nós mesmos do que a imagem consciente que fazemos de nós.

Lacônico como as representações religiosas, que não tem nenhuma mensagem complexa e verborrágica pra passar, a não ser a inexorabilidade da emoção ou nossa impotência diante do eterno.

A ideia do sonho americano repousando nas figuras e no próprio Andy Warhol, que ascendeu da pobreza ao estrelato; o suicídio e os acidentes de carro com significados subvertidos: nos fascinamos muito mais com a desgraça alheia do que com qualquer outra coisa.

Há o constante movimento entre a glamourização do comum e a banalização do glamouroso, atores hollywoodianos em suas caras comuns acabadas de festa, os produtos estúpidos que a propaganda endeusa, a vida dos Kennedy, tão ordinária quanto a nossa, mas que sabe-se lá porquê tem toda a nossa reverência.

Pra piorar, tudo engolfado por uma nada suave atmosfera de morte, sexo e abismo. Como sempre, o sexo é a pior parte, diga lá quem não tem seus medos mais queridos morando nessa área obscura. E aí Andy Warhol resolve todos os seus problemas com mais problemas, ou mais laconismo, ou o bom e velho e doído platonismo: “O sexo é uma ilusão. O mais excitante é não fazê-lo”, “A fonte dos problemas das pessoas são suas fantasias, se você não tivesse fantasias não teria problemas. Porque você aceitaria qualquer coisa que estivesse na sua frente, mas aí você não teria romance porque romance é encontrar sua fantasia em pessoas que não são sua fantasia...” – esse último doeu tanto que li literalmente e fui praticar na vida com toda a efusividade que me é incorrigível e, bem, no meio de tanta fantasia a realidade chamou tudo pro ordinário de novo, como deve ser.

A figura de Marilyn é serigrafada até perder o sentido, como aquelas canções que você escuta mil vezes. A beleza tão certa dela começa a virar um desconforto, sua boca é torta, seu sorriso, contrariado.

Enfim, uma atmosfera de pesadelo, uma vontade de vomitar. E pra continuar a iconoclastia de tornar ícone o que não é icônico, lanço no título a melhor oração que o santo Andy Warhol (forjador bem-sucedido da própria santidade) pode pedir de nós, seus fiéis perdidos na selva dos apelos.

O quê? Essa resenha tá em contradição com a de baixo? Imagina, minha coerência é que é alternativa.

domingo, 4 de julho de 2010

Let-down souls can feel no rhythm


Eu gosto do Beck Hansen. Ele sim sabe desdobrar seu pensamento em várias faces, transforma a mesma matéria prima em coisas diferentes, perto dele, Jack White fica só um obsessivo monológico (e são bem amigos, mas o discurso de um não constitui o outro). E aí, Charlotte Gainsbourg, filha do casal mais je t’aime mon amour do mundo, tem a missão fácil e difícil de fazer música francesa com uma cara mais contemporânea, precisa ir além dos clichês. Casamento perfeito! IRM é uma diversão com a voz doce e quase monótona de Charlotte jogada em alto contraste com os ritmos marcados e variantes da mente de um Beck (sem ambiguidades, viu). Aquela influência indisfarçável do Brasil, na percussão e numa ideia de berimbau, que foi se adensando na carreira do cantor desde Information, vai tomando uma forma mais personalizada e menos caricata ao lado da suavidade de Gainsbourg. Há a homenagem a diferentes estilos musicais, “releituras de quadros famosos” sob uma outra perspectiva, não original mas sempre na intenção de chegar lá, o pós-moderno mais puro e do bom (uma pinga). Sim, o romantismo e seu ideal de total originalidade já era até pros próprios românticos (Goethe que o diga e que o superou no auge, fim do século XVIII), mas se faz necessário falar, se expressar apesar do peso todo da tradição, não somos os inventores da roda mas somos quem a faz girar até hoje.

Um blues hard-rock-led-zeppelin como nos bons tempos é “Looking glass blues”, um folk da vovó Bob Dylan é “Heaven can wait” (que tem um clipe maravilhoso e responde com muita dignidade a essa inegável necessidade audiovisual da música contemporânea), “Le Chat du Café des Artistes” é uma canção de filme noir francês com alto contraste entre o comedimento feminino de Gainsbourg e o tom de terror inevitável dos violinos (e escutei mil vezes que quero morar nesses filmes), “In the end” é um belo representante da singela canção francesa e sua quase cafonice das Carla Bruni da vida, e “IRM” e “Master’s hands” são a loucura de um perfume de percussão brasileira contra (que virou a favor d’) a elegância francesa.

Pescando a filosofia da minha canção predileta do Beck, “Cellphone’s dead”, let-down souls can feel no rhythm, ou seja, toda a música é universal e dois corpos completamente alheios podem co-habitar o mesmo espaço, ou ainda, basta ser homem e de boa vontade pra fazer e apreciar a boa obra, ou mais, não basta estar vivo tem que existir na Terra, ou mais ainda, tem que ter muita coragem pra ser você mesmo que é uma cópia de tudo que já existiu mas na intenção do novo, “na eterna esteira do cratilismo” – nas palavras do outro vovô, Blikstein.

Escrevendo sobre várias coisas pra sempre chegar à mesma conclusão. Malz ae galera, é a fase.