quinta-feira, 8 de outubro de 2009

O mal é o desejo


As rugas são a melhor matéria-prima para um ator. Uma longa trajetória marcando o rosto, uma história comprida que não é contada, mas está forte, presente e gritando entre os silêncios. Isso é um pouco de Judi Dench em “Notas sobre um escândalo”.
Eu, que já me acostumei a assistir filmes só porque a Cate Blanchett está neles, e não perdi a garantia de ver algo bom novamente. A atriz se expressa com delicadeza e sem vulgaridade, como está difícil de se ver no mainstream atual. Blanchett se defaz da imagem soberana que a Rainha e Galadriel lhe atribuíram para viver uma mulher frágil e perdida.
A visão envolvente de um mundo adulto aparentemente saudável que está em ruínas é maravilhosa. Os caracteres que tipicamente fazem as pessoas se tornarem adultas – ter um emprego, fumar, fazer sexo – são o caminho principal e também o desvio, levando as personagens ao mundo do vício, da manipulação e da fragilidade.
Sheba é pureza e pecado, é a mulher complexa, sua plenitude de defeitos acirra e acende sua beleza. Barbara é a pessoa real tentando viver como um personagem de ficção, forçando o destino da estrada principal. E como boa personagem de ficção que é, nunca aprende.
O filme beira deliciosamente o politicamente incorreto em sua apresentação do homossexualismo, da deficiência mental e da pedofilia – tal ação se faz urgente nestes dias de hoje, em que as pessoas travestem seus demônios e preconceitos com máscaras absurdas de puritanismo e mensagens tão felizes de power-point.
Em face da hibridez das personagens e de suas ações perdidas, o ator principal do filme é o desejo: em seu estado mais puro, manipula e brinca com os bonecos humanos, até que as consequências venham fazer cobranças. E o mundo adulto volta à sua ordem aparente, que, agora sabemos, está sempre a um triz de se romper.
Deixar o mal agir. E depois utilizá-lo como óculos pra perceber que o mundo tem muito mais do que dois lados: é uma moral amoral que “Notas sobre um escândalo” pode legar.

quarta-feira, 16 de setembro de 2009

This is going to be the happiest day of my life


Escuto isso, quase todos os dias, de Michael Scott. E cada dia eu alimento a certeza que o The Office é o melhor seriado de tv. Seu humor não é feito de palavrões, apelação, mulheres seminuas, caricaturas escrachadas. Mas de pessoas comuns, que tem um realismo incrível pra deixar os espectadores espantados com os absurdos da vida normal. Diria que o espírito geral que permeia The Office é bem triste e desesperador mesmo, mas a agilidade dos esquetes e das ações, entremeados pelos depoimentos no estilo mais que atual de reality show, dão o equilíbrio e a graça pra esse todo meio irônico, meio amargo. Cada personagem não é um estereótipo, mas um clássico; na minha opinião, criados no método de fazer uma personalidade dentro de um corpo estranho a ela, o que torna tudo engraçado e especial. Kelly Kapoor é a típica bitch dos dias de hoje, toda segura e arrogante, mas indiana, fora dos padrões estéticos. Dwight Schrute seria o típico homem das cavernas, com a mente de quem mata pra sobreviver, mas engravatado dentro do escritório. Michael Scott é o típico idiota, que ninguém gosta de ter por perto e que nunca é responsável, contudo, é o patrão. Dessas deliciosas contradições saem coisas absurdas, como “Beers in heaven”, ou uma exposição pública dos relacionamentos amorosos de cada empregado como forma de apresentá-los, ou Michael embebedando Meredith pra obrigá-la a ir a uma clínica de reabilitação, ou uma sala de escritório transformada em discoteca em pleno horário de expediente, com o chefe insistindo pra que todos vão dançar. Maravilhosa também é profunda zombaria que a série faz com a divinização das grandes corporações, do espírito de liderança e equipe, da produtividade – são todas besteiras reais que temos que ouvir e nos sentir culpados por não vivê-las, mas que, na verdade, não existem! Ainda bem.

Dwight merecia um texto imenso só sobre ele. Um selvagem, completamente sem coração, descendente e falante de alemão (a língua mais deliciosamente bárbara entre as modernas), mente de fazendeiro, mente de predador. Só assim mesmo pra ele ser o ás da produtividade.

Enfim, The Office, meu grande amor de 2009.

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Um pouco sobre tudo o que um brasileiro pode ser, se ouvir sua loucura


Assisti, na quinta-feira passada, "Loki - Arnaldo Baptista" e me impressionei, de repente recebi muita coisa pra se refletir no que eu achava que seria mais uma tarde inútil de feriado na minha vida.

A começar por me apresentar uma parte da cultura brasileira da qual eu não sabia que era tão ignorante: a tropicália. Cresci ouvindo Caetano Veloso, li algumas de suas incursões literárias, sempre achei ele e Gil mais poetas do que músicos - o que me fez perder o interesse pelo movimento em face da musicalidade melhor casada com as letras do Clube da Esquina. Mas ver o nascimento d'Os Mutantes, a importância e influência deles em cantores que sempre gostei (como o Beck Hansen, que fez um cd inspirado por eles, "Mutations"; ou a primeira Marisa Monte, Pato Fu), me fez ver que eu já apreciava o trabalho de forma indireta.

Interessante também rever de perto a estética visual da banda, sem igual até hoje - principalmente nesses nossos tempos pobres de aparência vindo antes da música.

A geração d'Os Mutantes muito saudavelmente não ouvia os adultos, os inimigos da época eram conhecidos – e me lembrei de nós, que seguimos tentando dar alguma forma aos nossos próprios inimigos, mas sempre parando no meio do caminho, se entretendo pelo confortável mundo que nossos pais nos deram, conforto que nos prende, silenciosamente, na inação. Toda nossa geração é imensamente conservadora diante de Arnaldo Baptista, que fez do "distraídos venceremos" uma filosofia real para a vida, baseada nessas idéias hoje fora de moda como alegria, inocência, ironia (em formas mais sinceras).

O peso que eu não esperava carregar nessa tarde vadia de férias era a reflexão sobre as relações entre as pessoas. Arnaldo Baptista se transformando do jovem feliz no adulto, expondo os traumas dessa mudança, tão comum e ruim a todos. Perder o primeiro amor, usar drogas, ser um estranho para o próprio irmão, ser incompreendido pelo movimento que criou, e ver os beneficiados de sua criação o abandonando quando, aparentemente, a "fonte" havia secado - tudo isso criando um abismo misterioso e inevitável para ele mesmo. Achei tocante ver Sérgio Dias falando da sua intransigência da juventude, a obsessão que o jovem tem por suas idéias, passando por cima das pessoas, sem nenhuma flexibilidade pra entendê-las - tal atitude foi um dos motivos, segundo ele, para também se opor ao irmão. Apesar de um certo tom demagógico, (afinal se trata do, oh, virtuose Sérgio Dias, que pela sua declarações na tv, sempre achei que fosse o líder d'Os Mutantes) foi uma fala muito bem encaixada no contexto, figurou claramente na minha cabeça como a minha própria intransigência diante do que não se pode compreender e, enfim, não esperava isso.

O documentário segue o movimento de ascensão do mito Arnaldo Baptista, seu momento de "queda" e reascensão, procurando humanizar o "gênio". Esta intenção é bem trabalhada no vídeo, mas chega até o limite: "fiquei com ele porque não tinha mais ninguém, sobrou pra mim", diz a esposa atual de Arnaldo – depois desta fala, já não é possível não ver o protagonista como um pobre coitado, revestindo nosso olhar (que fora tão bem conduzido ao longo do filme), agora, de uma pequena dose de triste pieguice.

Outra reflexão importante que se faz presente é a precariedade no trato com arte e artistas no Brasil, atitude cuja conseqüência é a pobreza cultural cotidiana das massas no país (e me incluo nela, já que eu não sabia nada mesmo sobre Os Mutantes). Isso faz com que figuras importantes como Arnaldo Baptista só se tornem melhor reconhecidas no exterior, e aqui, sejam engolidas por julgamentos sobre sua vida pessoal – esquece-se de toda a arte, que distingue tão bem o protagonista de um simples louco.

Mas, enfim, assistam, é um capítulo importante da história de todos nós, não se identificar um pouco que seja com as canções, os atos, as histórias, as relações, as roupas, as idéias é quase impossível.

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Must be talking to an angel


Quando as Spice Girls acabaram, fiquei muito órfã de ídolos. Vivendo aquela fase chatíssima dos 11 anos, início da quinta série, muita espinha, cortei o cabelo curto pra imitar a Victoria e os garotos me olhavam como se eu tivesse me mutilado. Vi o Pato fu no Vídeo Show, com “Antes que seja tarde” ecoando numa praia e a Fernanda Takai muito feliz e suave, com um cabelo curtíssimo repartido ao meio, um “M” de McDonald’s bem estranho. Minha afinidade com ela foi bem visual, mulheres de cabelo curto, de onde eu vim, eram sempre velhas e professorais, mas a Fernanda Takai era uma imagem com frescor. O “Antes que seja tarde” rodou muito comigo nas tardes de tarefa de ciências, “continuo sob a mesma condição” é a exata definição pra passagem da infância pra adolescência, e daí pra idade adulta: se fica na expectativa de algo mudar e nada acontece. A partir de então me tornei facilmente um cosplay de Takai, minha maior emoção e ousadia era vestir saias abaixo do joelho com tênis (só não parecia tão religiosa por causa do cabelo).
Enfim, vê-la no show, tão de perto, foi a impressão de rever uma velha amiga, com quem nunca se conversou. Ela também é tão baixinha, visível no pedestal do microfone, levantado antes e já emoldurando a sua presença. Como ela fala durante o show! Às vezes é chato e desnecessário, mas em muitas outras é engraçado e reforça a sensação de velha amiga, quebra a imagem de fofinha e tímida, que é um tanto enjoativa por mais de meia hora. Bem engraçada mesmo, no caminho do espirituoso – essa bendita palavra que eu gosto mas nunca entendo completamente o que seja.
“Nunca subestime uma mulherzinha” é a lição a se tirar, Takai e Nelson Motta criando a surpresa de fazer os fãs antigos de Nara Leão consumirem a novidade da sua interpretação em “Onde brilhem os olhos seus”, e ao mesmo tempo levar a geração de Pato fu (como eu) a se reconhecerem na cantora carioca. As canções revivendo os anos 80 foram as melhores, com o violão do John me lembrando o “Love Vigilants” do show do Pato fu em Belo Horizonte, acho que em 2000, época do “Televisão de cachorro”, melhor fase da banda. “There must be an angel” foi uma surpresa feliz pra mim, que conhecia a música das minhas tardes chatas de tarefa e Jovem Pan, e ouvindo agora novamente na versão original do Eurythms quase morri com as firulas tristes da cantora e aquela bateria podre de anos 80. “An angel playing with my heart” foi o que Fernanda conseguiu ser ali, divertindo, cutucando, rindo, cantando Duran Duran em sua própria homenagem pra homenagear nossa lembrança de fazer o próprio caminho pelo mundo ordinário.
Não gostei daquele pessoal tentando tirar fotos de jornalista, atirando no show com máquinas, pra divulgar a imagem de uma cantora que a cidade mal conhece – todo mundo que a conhecia devia já estar por lá mesmo.
Pessoalmente, fiquei chateada com os rumos que o Pato fu foi tomando, o rock de John já não é a personalidade da banda, mas sim o pop de Fernanda, desde “Isopor”. E o que eu vi ontem me mostrou como eu subestimei a mulherzinha, que já não é mais tão tímida e infantil assim, sabe bem rir de si mesma, algo que definitivamente eu precisaria aprender com alguma urgência.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Match Point e o problema das referências


Vi Match Point esse mês, bem tarde, considerando a estréia em 2005 e o efeito que o filme já causou. Acredito que minhas impressões sejam as mesmas de outras pessoas da minha geração que estão nesta (inútil) condição universitária como eu. É um belo filme, construído com sagacidade e sutileza: os diálogos quase artificiais de tão rápidos, reproduzindo a dinâmica de um jogo de tênis; as personagens, os closes e beleza tão celebrada atualmente de Jonathan Rhys Meyers e Scarlett Johansson se dispõem harmoniosamente para criar o destaque e o tom de perigo em torno do romance principal.


Foi muito interessante ver as misérias humanas e o fracasso sendo tema da interpretação desses dois modelos de perfeição física de Hollywood, tal sofrimento salvou um pouco a personagem de Scarlett Johansson, afinal, ser atriz e interpretar uma não é exatamente encarnar um novo papel – o que, guardadas as proporções, “quase” me lembra a Beyonce, que fez vários filmes, sempre no papel de cantora, lhe poupando o esforço de atriz.

O que me fez pensar, ao ver o filme, foi problema da apresentação da principal referência literária: Crime e Castigo. Woody Allen realizou o sonho dos “fãs” do livro (principalmente aqueles do nicho do ateísmo panfletário), e retirou o julgamento moral que o protagonista recebia ao fim. Um crime sem castigo.

No início, a história se desenrola sem necessidade da referência, se apoiando na catártica relação de desejo e perigo de Nola e Chris. Mas ele já está lá, Crime e Castigo é o livro de cabeceira do protagonista e o tema de discussão que faz o sogro do rapaz passar a respeitá-lo – o conhecimento é meio de ascensão social. O casal principal também estabelece uma interessante relação de complementação: vindos da mesma origem pobre, Chris interpreta melhor que a atriz Nola o papel de bom rapaz, sendo frio e racional, enquanto a moça não consegue disfarçar seu desespero – tal nuance é uma virtude original da história do filme, o que podia fazê-lo valer por si mesmo, mas, enfim, a presença da referência se reforçava. Chris foi muito mais consciente de seus atos e bem mais vilão que Raskolnikov, mas o desencadeamento dos seus atos combinado com sua beleza tão atrativa convencem a nos fazer desistir de odiá-lo.

Enfim, por que Crime e Castigo? O desejo irresistível de ser poderoso e ter o aval “divino” para matar é bem doentio e cartártico – a força que há em ser Napoleão foi a coisa que mais me identificou com Raskolnikov quando fiz minha primeira leiturinha. Só isso é o suficiente? A referência teve a virtude de aparecer direta, não através de citações pedantes, mas na releitura das ações: o latrocínio, a culpa (a cena do sonho de Chris teve os melhores diálogos do filme), a conversa torturante com o detetive (que infelizmente durou tão pouco).

Mas a escolha deste livro... foi uma referência que facilmente agradaria um público ““intelectual”” (entre várias aspas), sem ficar contra a linha blockbuster, representada pelo perigoso e irresistível romance de dois medalhões da atualidade. Quando se conhece a referência, o espectador se sente lisonjeado em sua inteligência por conseguir identificá-la – o que, combinado com as virtudes originais da história do filme, vira mais uma “sacada” de mestre do que questão de sorte, tão citada lá. Woody Allen foi muito inteligente por nos fazer sentir inteligentes com uma referência tão canônica e (deveria ser) tão conhecida como Crime e Castigo. Falo isso porque li “A folha por Nigle” de Tolkien, recentemente, e a falta de referências me assustou. Me senti uma completa idiota por não conhecer nada de cultura nórdica (que pude saber que é uma das principais referências dele) e por não conseguir acompanhar o ritmo da narrativa, que não tinha nenhuma parada para reflexão psicológica (outro método para nos dar o poder da inteligência: a impressão de que entendemos o que se passa na mente de um personagem – e nem temos o domínio da nossa própria mente!).

O que se faz quando não se sabe do que uma história está falando? Ou se joga ela e suas referências fora e as julga menos importantes das que já foram adquiridas, ou se admite a falta de conhecimento e a necessidade de trilhar um caminho do zero. Sem dúvida, a última demanda um esforço maior. O que é ser inteligente, então? Bom, por ora acho que inteligência é uma lenda, mas as ilusões que temos por ela são extremamente perigosas.

Uma coisinha

Como falei que talvez eu comece a fazer alguma coisa mais construtiva na vida, vou usar esse blog pra comentar filmes e livros e essas coisas, copiando vários colegas meus de faculdade (esse blog começou motivado por essa idéia de cópia, e assim ele segue), para praticar a escrita, tentar melhorar. Espero melhorar minha auto-imagem me lendo por aqui.