quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Match Point e o problema das referências


Vi Match Point esse mês, bem tarde, considerando a estréia em 2005 e o efeito que o filme já causou. Acredito que minhas impressões sejam as mesmas de outras pessoas da minha geração que estão nesta (inútil) condição universitária como eu. É um belo filme, construído com sagacidade e sutileza: os diálogos quase artificiais de tão rápidos, reproduzindo a dinâmica de um jogo de tênis; as personagens, os closes e beleza tão celebrada atualmente de Jonathan Rhys Meyers e Scarlett Johansson se dispõem harmoniosamente para criar o destaque e o tom de perigo em torno do romance principal.


Foi muito interessante ver as misérias humanas e o fracasso sendo tema da interpretação desses dois modelos de perfeição física de Hollywood, tal sofrimento salvou um pouco a personagem de Scarlett Johansson, afinal, ser atriz e interpretar uma não é exatamente encarnar um novo papel – o que, guardadas as proporções, “quase” me lembra a Beyonce, que fez vários filmes, sempre no papel de cantora, lhe poupando o esforço de atriz.

O que me fez pensar, ao ver o filme, foi problema da apresentação da principal referência literária: Crime e Castigo. Woody Allen realizou o sonho dos “fãs” do livro (principalmente aqueles do nicho do ateísmo panfletário), e retirou o julgamento moral que o protagonista recebia ao fim. Um crime sem castigo.

No início, a história se desenrola sem necessidade da referência, se apoiando na catártica relação de desejo e perigo de Nola e Chris. Mas ele já está lá, Crime e Castigo é o livro de cabeceira do protagonista e o tema de discussão que faz o sogro do rapaz passar a respeitá-lo – o conhecimento é meio de ascensão social. O casal principal também estabelece uma interessante relação de complementação: vindos da mesma origem pobre, Chris interpreta melhor que a atriz Nola o papel de bom rapaz, sendo frio e racional, enquanto a moça não consegue disfarçar seu desespero – tal nuance é uma virtude original da história do filme, o que podia fazê-lo valer por si mesmo, mas, enfim, a presença da referência se reforçava. Chris foi muito mais consciente de seus atos e bem mais vilão que Raskolnikov, mas o desencadeamento dos seus atos combinado com sua beleza tão atrativa convencem a nos fazer desistir de odiá-lo.

Enfim, por que Crime e Castigo? O desejo irresistível de ser poderoso e ter o aval “divino” para matar é bem doentio e cartártico – a força que há em ser Napoleão foi a coisa que mais me identificou com Raskolnikov quando fiz minha primeira leiturinha. Só isso é o suficiente? A referência teve a virtude de aparecer direta, não através de citações pedantes, mas na releitura das ações: o latrocínio, a culpa (a cena do sonho de Chris teve os melhores diálogos do filme), a conversa torturante com o detetive (que infelizmente durou tão pouco).

Mas a escolha deste livro... foi uma referência que facilmente agradaria um público ““intelectual”” (entre várias aspas), sem ficar contra a linha blockbuster, representada pelo perigoso e irresistível romance de dois medalhões da atualidade. Quando se conhece a referência, o espectador se sente lisonjeado em sua inteligência por conseguir identificá-la – o que, combinado com as virtudes originais da história do filme, vira mais uma “sacada” de mestre do que questão de sorte, tão citada lá. Woody Allen foi muito inteligente por nos fazer sentir inteligentes com uma referência tão canônica e (deveria ser) tão conhecida como Crime e Castigo. Falo isso porque li “A folha por Nigle” de Tolkien, recentemente, e a falta de referências me assustou. Me senti uma completa idiota por não conhecer nada de cultura nórdica (que pude saber que é uma das principais referências dele) e por não conseguir acompanhar o ritmo da narrativa, que não tinha nenhuma parada para reflexão psicológica (outro método para nos dar o poder da inteligência: a impressão de que entendemos o que se passa na mente de um personagem – e nem temos o domínio da nossa própria mente!).

O que se faz quando não se sabe do que uma história está falando? Ou se joga ela e suas referências fora e as julga menos importantes das que já foram adquiridas, ou se admite a falta de conhecimento e a necessidade de trilhar um caminho do zero. Sem dúvida, a última demanda um esforço maior. O que é ser inteligente, então? Bom, por ora acho que inteligência é uma lenda, mas as ilusões que temos por ela são extremamente perigosas.

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