quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Por que estudamos?


Rubens Rodrigues Filho


Estudar: esse costume, essa prática, esse vício. Por que afinal temos de sentir-nos atraídos por isso, que parece ser uma espécie de procura, uma busca, uma quête? Que tipo de imagem governa esse ato? O modelo de um escavar? Desenterrar? Ou então: perseguir? Seguir rastros? Ou: “juntar coisa com coisa”? “Ligar os fatos”? Consequentemente, montar um quebra-cabeças, encaixar peças?

Vários tipos de ocupação, entretenimentos variados. Charadas. Passatempos. Jogos de concentração para distrair. Introduzir um sentido no aleatório ou então supor que esse sentido já está lá posto, oculto, e que então alguém o busque. Esconde-esconde. A verdade que se esconde, o afeto que se encerra (“se esconde” no sentido de “está contido”). Reservas se significação. O que “nos reserva” um texto.

Uma mitologia branca (Derrida) em todas essas imagens, analogias. Orientar-nos por um desses modelos, seguir um desses esquemas como se fosse um mapa. Proceder segundo um imaginário escolhido, determinante e arbitrário. Também uma espécie de cálculo com signos, na relação com o texto (chamar isso de “método”, metà hodós?)

Por exemplo, os pares de conceitos, entredefinindo-se por oposição dois a dois: “mecânico” versus “dinâmico”. As substituições permitidas, por equação. Permutações. Jogos lógicos. “Lógica” versus “metafísica”. Notar que o sentido imediato não é tranquilo, alçapões de sentido. Mesmo para uma relação descritiva. Um texto é “ação comunicativa” (Habermas)?

As contaminações, o hábito de referir um determinado signo a um contexto específico e ver nesse signo sempre as marcas desse mesmo contexto. O “realismo” da querela dos universais: na Idade Média era o contrário de... “nominalismo”.

Quanto mais profundamente se medita, acreditando mergulhar numa profundez ideal, mais se perde pé nessa superfície trabalhada por “efeitos de sentido” – a palavra na página, a agilidade desses deslizamentos – mas então será sempre com os poderes do imaginário que essas forças todas estarão jogando? Surge então uma necessidade, não só de pensar – “energia” mental idealista – mas de escrever: pensar com a ponta da caneta, diretamente no papel, sucessão de minúsculos atinhos, retas, curvas, pingos, nas fibras materialistas que sustentam uma a uma esse mover-se, o querer real. Caberia, teria cabimento? Atos de percepção, qualidade perceptiva. Pergunta: – Que sentido tal palavra “pode” ter nesse texto?

Psicologia de um intérprete que se pretendesse “fiel”: – Minhas articulações tornaram o texto de Novalis (fragmental) coerente?Ou sua coerência possibilitou a articulação? Esta segunda opinião, objetivista, realista, é sem dúvida a mais atraente, faz de mim um observador atento, mas neutro, e garante a firmeza de minhas afirmações: eu não tinha escolha, afinal, já que objetivamente é assim. Nem é meu ponto de vista, sempre sujeito à revisão, nem mesmo é uma tese que pretendesse demonstrar meus enunciados a serviço dessa “causa”, subordinados a esse desejo. Entendam, pois, meus proferimentos como obedientes ao feitio do seu próprio objeto, curvados ao capricho dele, que é anterior a mim e verdadeiro até na minha ausência. Digo que é assim porque assim é. Detestaria que fosse porque o digo, pois não quero comandar. Fazer minha vontade, no caso, seria o modo mais seguro de contrariar-me.

Uma interpelação do texto ao leitor. O texto em seu leito, deitado. Atividade só por parte do outro, que lhe põe o olho em cima e vai dotando de sentido aquelas combinações de letras (ao todo 24 sinais, separados por espaços), pressupondo apenas a condição de que esses sinais já lhe sejam conhecidos: a alfabetização. Em situações de fala, aparentemente, cabe passividade ao ouvinte, que no entanto tem a mesma função que o leitor: na qualidade de destinatário, receptivo.

Como pode o texto, o fraco, desprovido de entonação, gesticulação, presença, deixar de desenvolver as virtudes reativas descritas por Nietzsche? Chamar sem voz? Ganhar no berro, em silêncio? Paraplégico, imóvel, depende das virtudes do outro, daquele que se define pelo ato mesmo de atender-lhe, que se chama leitor por ser quem lê. O sinal “atrai” a vista, “prende” o olhar. Mas por que meios, se ele é sinal, inerte? O leitor talvez acredite estar com ele na mesma relação de neutralidade – de observação – em que se põe perante os fatos da natureza. Julga-o passivo, disponível a seu dispor, e por sua vez dispõe-se a obedecer-lhe. Perseguidor, converteu-se em seguidor. Trompe-l'oeil? Image mise em abîme? “Isso” de ler e escrever.

Novalis, que foi historicamente aquele “leitor ativo” solicitado por Fichte, identificou no texto da Wissenschaftslehre uma operação que ele batizou de innere Wunder (“milagre interno”) e descreveu-a assim: – “Fichte, com palavras escritas, com fórmulas, com combinações, opera milagres internos.” – Será que o romantismo há de retornar sempre?


In:_____, Ensaios de filosofia ilustrada. São Paulo: Iluminuras, 2004.


segunda-feira, 12 de setembro de 2011

tradução - Indiferença na eternidade


Em comparação às famílias catastróficas dos novos romances, os Buddenbrooks irradiavam alegria
Todas as famílias felizes se parecem, e, por isso, ninguém escreve sobre elas. Se Os Buddenbrooks não tivessem interessado a nenhum leitor, se tivessem aumentado sua riqueza cada vez mais, se Ana Karenina tivesse ficado com seu Karenin, se Leon Tolstoi nunca tivesse formulado aquelas belas frases, então cada família infeliz seria infeliz de um modo muito especial e bem peculiar. Assim, Tolstoi funda a tradição do romance moderno familiar, ao qual se ligam os dois debutes nesse outono – que, particularmente por isso, são recomendáveis, pois indicam uma visão jovem sobre a imagem atual da família.
A expressão “desordem” é, para as famílias catastróficas apresentadas, em si, ainda um pouco atenuante. Os pais de Franziska em Falscher Frühling (ainda não traduzido em português, título literal provável: Falsa Primavera) são daqueles que não se deseja pra ninguém: o pai Lothar, um homem boêmio de teatro, bêbado, maledicente e promíscuo. A mãe Emilie, uma limpinha mulher que fez carreira profissional, e troca a mobília do palco pela do lar, bate em retirada de seu casamento para os braços de um pequeno burguês. Não é nenhuma surpresa que a negligenciada Franziska prefira se ficar no Second life à vida real (no romance, o mundo on-line também se faz presente), e desviar das amizades.
Talvez ela deveria conversar com o estudante de medicina Simon, de Vom Atmen unter Wasser (ainda não traduzido em português, título literal provável: Sobre Respirar Embaixo D’Água). Cuja mãe, Anne, está – desde a morte violenta de sua irmã – quase que tão-somente apática, e tenta se suicidar; enquanto seu pai, Jo, como assistente social, prefere se preocupar com os outros. Perante todos esses erros e confusões com o formato de novela das oito, ficamos desejando a volta daquela narrativa de tipo contemplativo do século 19. Naquela época, quatrocentas páginas eram suficientes e perfeitas para quando, como em Stechlin, um velho morre e dois jovens se casam.
Já que, com a erosão das normas burguesas, a catarse também está banida, hoje deve-se acontecer mais eventos na narrativa. A falência da família, que ainda nos Buddenbrooks se estende por mais quatro gerações, realiza-se, hoje, internamente num indivíduo. Nos meses em que Ana Karenina precisou refletir sobre o olhar de Wronskij, Lothar, de Falscher Frühling, colecionava affairs. O suicídio libertador, por outro lado, perdeu sua força literária, desde que a depressão, de longe, começou a ser percebida como fenômeno medicinal. Como o fim solene da vida e de um livro, não se apresenta mais como a solução. Em vez de, como Ana Karenina, se lançar em frente ao trem, os personagens precisam estender sua indiferença por toda a eternidade, num final aberto.
Em sua maioria, as crianças são quem mais sofrem – antes subtraídas discretamente sob a proteção de uma ama, uma vez que elas atrapalhavam o enredo. Simon e Franziska levantam hoje não só a voz, eles procuram um projeto contra àquele estilhaçado dos pais. Iriam eles se cruzar, iriam até se apaixonar, depois ambos sentiriam falta de um relacionamento, que se elevasse sobre o desgaste do dia-a-dia. Este é um desejo mais belo e muito romântico. Soa quase como o século 19.

(Tradução feita por mim e Francine Camelim do artigo "Wursteln in Ewigkeit", de Inge Kutter, publicado na Zeit Campus de janeiro e fevereiro de 2011)

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Texto original
Wursteln in Ewigkeit
Im Vergleich zu den Katastrophensippen der neuen Romane strahlten die Buddenbroks geradezu vor Glück
Alle glücklichen Familien ähneln einander, und deswegen schreibt auch keiner über sie. Die Buddenbrooks hätten keinen Leser interessiert, hätten sie ihren Reichtem beständig gemehrt, und wäre Anna Karenina bei ihrem Karenin geblieben, Lew Tolstoj hätte nie jenen schönen Satz formuliert, demzufolge jede unglückliche Familie auf ihre ganz besondere und einzigartige Weise unglücklich ist. So aber begründete er die Tradition des modernen Familienromans, an die in diesem Herbst gleich zwei Debüts anknüpfen, die vor allem deswegen lesenswert sind, weil sie eine junge Sicht auf das heutige Familienbild zeigen.
Der Ausdruck "zerrüttet" ist für die darin vorgestellten Katastrophensippen noch ziemlich untertrieben. Franziskas Eltern in Falscher Frühling möchte man niemandem wünschen: Vater Lothar, ein abgehalfterter Theatermacher, saufend, fluchend und promisk. Mutter Emilie, die saubere Karrierefrau, von der Bühnen- zur Innenausstattung umgeschwenkt, flieht vor den Eskapaden ihres Gatten in die Arme eines Biedermannes. Kein Wunder, dass sich die vernachlässigte Franziska lieber in Second Life statt im wahren Leben aufhält (im Roman ist die Online-Welt noch in) und um Freundschaften einen Bogen schlägt.
Vielleicht sollte sie sich mit dem Medizinstudenten Simon aus Vom Atmen unter Wasser unterhalten. Dessen Mutter Anne ist seit dem gewaltsamen Tod seiner Schwester fast nur noch apathisch und hat gerade einen Selbstmordversuch unternommen, während sein Vater Jo sich als Sozialarbeiter lieber um andere kümmert. Angesichts dieser Irrungen und Wirrungen vom Format einer Vorabendsoap wünscht man sich die beschauliche Erzählweise des 19. Jahrhunderts zurück. Damals reichte es für vierhundert Seiten noch vollkommen aus, wenn, wie im Stechlin, ein Alter starb und zwei Junge heirateten.
Weil mit der Erosion bürgerlicher Normen auch die Fallhöhe verschwunden ist, muss heute umso mehr passieren. Der Niedergang einer Familie, der sich bei den Buddenbrooks noch über vier Generationen erstreckte, vollzieht sich heute innerhalb einer einzigen. In den Monaten, die Anna Karenina benötigte, um über Wronskijs Blicke nachzudenken, bringt Lothar aus Falscher Frühling gleich mehrere Affären unter. Der Freitod wiederum hat an literarischer Kraft verloren, seit die Depression weithin als medizinisches Phänomen wahrgenommen wird. Als würdevolles Ende von Leben und Buch ist er keine Lösung mehr. Statt sich wie Anna Karenina vor den Zug zu werfen, müssen die Figuren nach dem offenen Schluss bis in alle Ewigkeit weiterwursteln.
Am meisten leiden dabei die Kinder, die früher diskret in der Obhut einer Amme verschwanden, weil sie die Handlung störten. Simon und Franziska erheben heute aber nicht nur die Stimme, sie suchen auch nach einem Gegenentwurf zum elterlichen Scherbenhaufen. Würden sie sich begegnen, sie würden sich vielleicht sogar verlieben, denn beide sehnen sich nach einer Beziehung, die über alle Alltagsreiberei erhaben ist. Das ist ein schöner Wunsch und ein sehr romantischer. Er klingt fast nach 19. Jahrhundert.

quarta-feira, 20 de julho de 2011

Como ser humano


Ver a Alemanha foi um choque. Berço de vários humanismos e de uma arte auto-crítica de nível, o país foi espiritualmente arrasado pela guerra. As maiores qualidades alemãs mal estão nas ruas, na tv, na fala das pessoas. Tudo virou culpa, tentativa falsa de apaziguamento, desconforto estranho com o estrangeiro ou o diferente: deixá-lo no limbo do silêncio. A globalização mal chegou ou é muito localizada, intercâmbio só entre iguais. Ou tudo virou um imenso Estados Unidos, com consumo desenfreado de produtos todos iguais pra disfarçar a História. O sentimento injusto de sequestro da História no ar que se respira. Não seqüestro, mas um direcionamento violento, que não deixa espaço pra nada conotativo.

Voltar pro Brasil foi estar ineditamente perdida, pensar em desistir de um caminho iniciado há sete anos. Mas, felizmente, tive a oportunidade de ver algo que me salvou de mim.

Superficial ou profundamente, Werner Herzog poderia ter nascido em qualquer país. Seus temas são o homem, a natureza, o sonho, as relações. Não teve educação formal pra profissão, mas traz alguns bons valores de outras filosofias alemãs, desenha entre si e elas um traço de continuidade espontâneo.

Há o humanamente construído, o social, e o natural. Os dois dizem respeito ao homem e às suas possibilidades, mas é realmente ruim saber que há um esforço do mercado em nos tornar consumidores, homens com traços específicos de socialidade, apenas. Naturalizar o social e estranhar as tempestades, temer a terra, o desconforto, fazer do corpo casa pra somente prazeres temporários, simplificar, banalizar o humano na vida, fazê-lo vendável e saciável com bobagens.

Herzog, como seus personagens, se pauta em fortes questões existenciais. Como manter a integridade de um indivíduo, suas aspirações românticas (que apesar de serem, muitas vezes, irrealizáveis, mantém o mínimo de fé e ligação à vida), sua sensibilidade ao real e à dificuldade sem recorrer à cafonice dos livros de auto-ajuda, mensagens de powerpoint, fanatismo religioso, psicólogos, anti-depressivos, jogatina, novelas, drogas, pornografia, jogos de futebol e promiscuidade? Como alimentar a autonomia e autenticidade individual e não a ansiedade e as carências?

Não há resposta. Herzog estamenta a vida como luta infinda, solitária, titânica e inútil pela dignidade; uma vez que somos oprimidos e limitados por imagens midiáticas kitsch e pela venda de nossa capacidade (na maioria das vezes) somente prática de trabalho. A revolta titânica contra forças enormes e ideologias imprecisas é ridícula, mas é a única coisa a se fazer.

Herzog mostra que o sonho burguês de vencer na vida e merecer a atenção do outro é de todos: cegos, surdos, anões, soldados de segunda classe, reféns seculares de cavernas, ursos, astronautas frustrados – a busca por afeto e reconhecimento ainda é mais forte e universal do que o status financeiro ou a pulsão pelo consumo.

O mundo se tornou muito complexo, milhares de modos de vida diferentes foram descobertos, é injusto e anacrônico que um eurocentrismo ou o consumismo sejam a medida para todas as coisas: “nossa iconografia [a que nos bombardeia a mídia e propaganda] é pobre para nosso tempo”, diz Herzog. Assim, o diretor é igualmente agressivo ao apresentar imagens de expedições espaciais acompanhadas por músicas tribais como arte, ou homens que abdicam de seu conforto por um sonho/impulso aparentemente bobo e inexplicável – nossa sensibilidade com o verdadeiramente humano anda fraca.

Minhas ideias também andam embasadas num subtexto de fim da guerra fria, luta de valores antigos europeus (comunismo) com os “novos” estadunidenses (o predomínio da técnica, velocidade, eficiência). O último ganhou, mas os humanos ainda insistem no humanismo, em ter sentimentos como amor ou tristeza, em sonhar, em doar. Se alguma ordem econômica/social se aproximar disso e não podá-lo, talvez teria algum sucesso.