As visões que as pessoas têm sobre a tristeza me atraem, desde criança. Eu não era triste, mas via aquilo como a matéria-prima das coisas que me sensibilizavam: canções, romances, pinturas – a beleza gratuita se vertia em reflexão. Os estados obscuros de alma eram encantadores, apareciam como a crítica mais acirrada a nossa obrigação social de felicidade e produtividade. Assim, de certo modo, ficava muito insatisfeita de ver a vida fora da arte, sempre tão superficial. Brinco de procurar nas relações esse conhecimento do pior e mais profundo no humano, mas acho que ele está (com real sinceridade) no lugar onde eu o encontrei originalmente. Freud tem razão por identificar uma massa estranha e disforme sob toda máscara humana – só não concordo que ela seja completamente dominada pelo impulso sexual. Digamos que, aí, mora meu interesse pior, mais inútil e (provavelmente, por isso) mais essencial à minha personalidade.
Não há nada tão estranho quanto encontrar a tristeza e a loucura, que todo mundo precisa esconder, bem escancaradas na plataforma midiática mais hipnotizante e acessível: a música pop. Ainda mais se elas forem declaradas por uma jovem bonita, frágil e sensível – que parece em luta constante pra fugir dos desígnios que o mundo teria para alguém com a sua bela aparência. Um combate sem fim entre ser e parecer é Fiona Apple. Filha de pais nunca casados, estuprada aos doze anos, seu sucesso não existiu apesar de sua tristeza e inconformismo – ela faz visível a presença de seus monstros.
Fiona foi um pouco mais além da slacker generation dos anos 90 – esta última, consumidora de uma indústria fonográfica monstruosa (notável nos vampiros apelativos Kurt Cobain e Smashing Pumpkins), que se alimentava da insegurança e depressão tão comuns nos adolescentes. A cantora sobreviveu à onda do show business de glamorização e/ou banalização do suicídio, preservando a autenticidade da sua voz. Seu discurso de 1997, quando da entrega do prêmio na MTV (“This world is bullshit”), atesta uma consciência exacerbada de si mesma e do ambiente de comércio de sonhos e comportamentos em que está, de um modo bastante desagradável.
A maturidade precoce de Tidal (1996), aprofundada em When the pawn... (1999) – cuja pretensão se estampa no título, um poema de 90 palavras –, são promessas cumpridas na força de sua voz grave e em sua mão pesada ao piano. Mesmo já firmada num alto nível, Fiona supera a si mesma e à sua geração com Extraordinary Machine (2005), seu melhor trabalho.
A história da concepção do disco, mais uma vez, é dramática: a bela cantora versus suas feias e instigantes fraturas expostas. Escrito ao término do relacionamento com o cineasta Paul Thomas Anderson (de Magnólia, 1999, que assisti voluntária e involuntariamente tantas vezes em 2005) e produzido pelo amigo Jon Brion, o trabalho estava pronto desde 2003, mas fora engavetado por Fiona (que não gostou do resultado geral). Na época, os fãs fizeram o movimento “Free Fiona”, inflamados pela declaração de Jon Brion de que a gravadora se recusou a lançar o disco por falta do apelo comercial nas músicas. O movimento serviu para “livrar Fiona dela mesma”, e ajudá-la regravar todo o disco com uma nova concepção e sob a produção de Mike Elizondo.
A versão de 2003 vazou na internet e foi aclamada, vista como melhor que a original. Há poucas diferenças entre as duas, as mais visíveis estão nas faixas “Not about love”, “O’Sailor” e “Red, red, red”. A influência do cinema, presente em canções que se assemelham às trilhas de cenas (acirrando a tensão, tristeza, comicidade), é mais intensa, mas a voz de Fiona parece rasgada, dura e contrariada. “Red, red, red”, minha canção favorita, também me dá medo e jorra informações excessivas de um interior perturbado, que ninguém gostaria de expor a público, ou mesmo não conseguiria traduzir tão bem em letra e canção. A música tem um tom suspense, de “filme noir”, mas o desagrado da cantora é indisfarçável. Na versão de 2005, ela trabalha pra retirar todo o elaborado arranjo, focalizando na interpretação de sua voz. Achei intrigante a passagem pelos dois extremos, e o certo peso que ainda permanece na letra da canção.
Fiona transforma o lugar comum do fim de um relacionamento amoroso num pesadelo, num grito de revolta, numa piada pra sorriso amarelo. Ao contrário da confiança da letra de “Sleep to dream” (que trata do mesmo assunto), em Extraordinary machine, a cantora vai ao fundo do poço com muita coragem, converte o apático deprimido em um instigante, ativo e perigoso revoltado. A perda do amado é amargada, visível até na mudança de fisionomia da cantora – que teve sua imagem moldada pela direção dos clipes feita pelo ex-namorado, constituiu uma parceria criativa com ele em cenas de Magnólia, e agora se vê obrigada a reconstituir sua arte novamente sozinha. E consegue o fazer, bem melhor do que antes.
Fiona, pra mim, sai da atribuição lugar comum sempre feita às mulheres: ou são santas ou putas. A santa é bela mas boba, não sabe de seu poder. A puta tem a consciência extrema desse poder, mas, por vezes, se deixar dominar por ele. Fiona é bruxa, ciente dos elementos que constituem seu mundo, ciente de sua necessidade da existência de seu lado bom e do ruim; sabendo que, ao se expor, deve ser coerente com estas duas partes. Contudo, a cantora não esconde sua inabilidade para a harmonia: do desequilíbrio, surge o seu melhor. Fiona é conscientemente desagradável, dissonante, como sempre foi e será a realidade.