segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Muito tempo em pouco tempo e em pouco espaço



A história é muito importante para a Alemanha. Esse país centro de uma Europa estranha e gelada, de milhares de povos e línguas diferentes por metro quadrado, constantes embates e constante medo de que seu povo formado por deus vá ser expulso da Terra pelos homens, a rejeição e o consequente extermínio em massa.

Ou a dura necessidade de adaptação, apreensão dos signos novos, como a alegre, vazia, luxuosa e fácil cultura americana – uma obrigação após a segunda guerra. O povo atomista tendo que ruminar uma noção de massificação, que sempre lhe fora inexistente. Isso resulta na carinha de MM’s mais gordurosa e sofrida que existe. Ou numa juventude socialista apática e pálida, só coberta das vistosas indumentárias dos anos 50, como numa imitação dos filmes de Hollywood – estes sim, onde os atos e as boas intenções produzem algum efeito no mundo e são imediatamente recompensados.

“Se não neste tempo” apresenta a visão microscópica dos pintores alemães sobre os efeitos e influências vividas pelo país ao fim do século XX. A fotografia, a história em quadrinhos, a propaganda, o abstracionismo, as cores neon, a arquitetura, o figurativismo estão entre as inúmeras variações possíveis para a pintura e a expressão do povo sobrevivente a um ainda não findo assédio moral de todo o resto do mundo à sua identidade. A felicidade tão certa da queda do muro se transforma em morbidez misteriosa: em “Phienox”, Daniel Richter (que já inverte o alfa e o ômega no título) transforma os alegres jovens do novembro de 1989 em figuras fantasmagóricas flourescentes, transportando um corpo diferente a um novo barco, numa atitude nada clara, automática, bondosa ou natural. Eberhard Havekost estratifica um eterno insolúvel segredo na figurativização de dois personagens com os rostos cobertos pelos quadriculados de reportagens investigativas; as novas esfinges.

Chegar perto dos quadros e ver as pinceladas ou o spray, é como ter os artistas em presença, visualizar seus minúsculos defeitos que dão num todo perfeito.

Viver é mesmo imprevisível pela eterna exibição variada de signos que inspiram à vida ou à morte, misturando ambos num total espúrio cuja pureza é também a adulteração; ou a graça da vida é a morte.

Essa maravilha toda contrasta com a exposição no piso superior, sobre o romantismo: quadros de David, citações de Goethe, Novalis, Herder, Rousseau, a individualidade e o entusiasmo. Sinceramente não sei realizar a ligação entre essa força que se fazia tão positiva, no século XVIII, e a heterogênea era moderna; mas ela está lá.

Enfim, vão lá ver como a guerra e a resistência não acabaram, mas passaram a existir por segundos e centímetros.

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Andy Warhol, vai tomar no cu


E a vida ataca cruelmente, de novo, quando você menos espera. Que tal tomar um soco na cara pra desfigurar o rosto e doer por uns bons meses? Então.

Andy Warhol é lacônico como a era quando nasceu, como a era que ele produziu. A força impactante da promessa vazia da propaganda, que sempre caímos porque somos pegos pelo nosso pior lado, nossa carência, nossa necessidade. A culpa posterior pelo que achávamos inconsciência e era a expressão do nosso desejo mais real, íntimo e sujo, aquele “eu” que não conhecíamos e é mais nós mesmos do que a imagem consciente que fazemos de nós.

Lacônico como as representações religiosas, que não tem nenhuma mensagem complexa e verborrágica pra passar, a não ser a inexorabilidade da emoção ou nossa impotência diante do eterno.

A ideia do sonho americano repousando nas figuras e no próprio Andy Warhol, que ascendeu da pobreza ao estrelato; o suicídio e os acidentes de carro com significados subvertidos: nos fascinamos muito mais com a desgraça alheia do que com qualquer outra coisa.

Há o constante movimento entre a glamourização do comum e a banalização do glamouroso, atores hollywoodianos em suas caras comuns acabadas de festa, os produtos estúpidos que a propaganda endeusa, a vida dos Kennedy, tão ordinária quanto a nossa, mas que sabe-se lá porquê tem toda a nossa reverência.

Pra piorar, tudo engolfado por uma nada suave atmosfera de morte, sexo e abismo. Como sempre, o sexo é a pior parte, diga lá quem não tem seus medos mais queridos morando nessa área obscura. E aí Andy Warhol resolve todos os seus problemas com mais problemas, ou mais laconismo, ou o bom e velho e doído platonismo: “O sexo é uma ilusão. O mais excitante é não fazê-lo”, “A fonte dos problemas das pessoas são suas fantasias, se você não tivesse fantasias não teria problemas. Porque você aceitaria qualquer coisa que estivesse na sua frente, mas aí você não teria romance porque romance é encontrar sua fantasia em pessoas que não são sua fantasia...” – esse último doeu tanto que li literalmente e fui praticar na vida com toda a efusividade que me é incorrigível e, bem, no meio de tanta fantasia a realidade chamou tudo pro ordinário de novo, como deve ser.

A figura de Marilyn é serigrafada até perder o sentido, como aquelas canções que você escuta mil vezes. A beleza tão certa dela começa a virar um desconforto, sua boca é torta, seu sorriso, contrariado.

Enfim, uma atmosfera de pesadelo, uma vontade de vomitar. E pra continuar a iconoclastia de tornar ícone o que não é icônico, lanço no título a melhor oração que o santo Andy Warhol (forjador bem-sucedido da própria santidade) pode pedir de nós, seus fiéis perdidos na selva dos apelos.

O quê? Essa resenha tá em contradição com a de baixo? Imagina, minha coerência é que é alternativa.

domingo, 4 de julho de 2010

Let-down souls can feel no rhythm


Eu gosto do Beck Hansen. Ele sim sabe desdobrar seu pensamento em várias faces, transforma a mesma matéria prima em coisas diferentes, perto dele, Jack White fica só um obsessivo monológico (e são bem amigos, mas o discurso de um não constitui o outro). E aí, Charlotte Gainsbourg, filha do casal mais je t’aime mon amour do mundo, tem a missão fácil e difícil de fazer música francesa com uma cara mais contemporânea, precisa ir além dos clichês. Casamento perfeito! IRM é uma diversão com a voz doce e quase monótona de Charlotte jogada em alto contraste com os ritmos marcados e variantes da mente de um Beck (sem ambiguidades, viu). Aquela influência indisfarçável do Brasil, na percussão e numa ideia de berimbau, que foi se adensando na carreira do cantor desde Information, vai tomando uma forma mais personalizada e menos caricata ao lado da suavidade de Gainsbourg. Há a homenagem a diferentes estilos musicais, “releituras de quadros famosos” sob uma outra perspectiva, não original mas sempre na intenção de chegar lá, o pós-moderno mais puro e do bom (uma pinga). Sim, o romantismo e seu ideal de total originalidade já era até pros próprios românticos (Goethe que o diga e que o superou no auge, fim do século XVIII), mas se faz necessário falar, se expressar apesar do peso todo da tradição, não somos os inventores da roda mas somos quem a faz girar até hoje.

Um blues hard-rock-led-zeppelin como nos bons tempos é “Looking glass blues”, um folk da vovó Bob Dylan é “Heaven can wait” (que tem um clipe maravilhoso e responde com muita dignidade a essa inegável necessidade audiovisual da música contemporânea), “Le Chat du Café des Artistes” é uma canção de filme noir francês com alto contraste entre o comedimento feminino de Gainsbourg e o tom de terror inevitável dos violinos (e escutei mil vezes que quero morar nesses filmes), “In the end” é um belo representante da singela canção francesa e sua quase cafonice das Carla Bruni da vida, e “IRM” e “Master’s hands” são a loucura de um perfume de percussão brasileira contra (que virou a favor d’) a elegância francesa.

Pescando a filosofia da minha canção predileta do Beck, “Cellphone’s dead”, let-down souls can feel no rhythm, ou seja, toda a música é universal e dois corpos completamente alheios podem co-habitar o mesmo espaço, ou ainda, basta ser homem e de boa vontade pra fazer e apreciar a boa obra, ou mais, não basta estar vivo tem que existir na Terra, ou mais ainda, tem que ter muita coragem pra ser você mesmo que é uma cópia de tudo que já existiu mas na intenção do novo, “na eterna esteira do cratilismo” – nas palavras do outro vovô, Blikstein.

Escrevendo sobre várias coisas pra sempre chegar à mesma conclusão. Malz ae galera, é a fase.

sábado, 3 de julho de 2010

O milagre da multiplicação ou isto não é uma resenha



Um dia você tá lá, vivendo sua vida mais que ordinária, pobre ética e esteticamente, e vai despretenciosamente assistir à uma peça que mostra as inúmeras possibilidades de se fazer uma mesma coisa. Epifania. Não queria sempre me surpreender tanto assim que isso é falta de fé na humanidade, mas enfim, variações do mesmo tema, mudanças, novos pontos de vista, de repente a fartura jorrante nessa vida que eu só ponho os óculos da miséria pra enxergar: chorei como criança, pra variar.

“Primeiras rosas” é um primor de recursos: teatro de sombras, de bonecos, de atores, vídeo, dança. Guimarães Rosa desce do céu inatingível dos escritores consagrados pra existir finalmente em carne e espírito no meio de nós. A representação de “A terceira margem do rio” é a coisa mais triste e doída da vida e também é um Hamlet. A luz serve de câmera no teatro de sombras. Todos os atores são bonitos, com seus rostos sorrindo, acompanhando e fazendo a expressão dos bonecos. A beleza deles só existe porque todos são um conjunto de partes inseparáveis, a beleza de um se completa no sorriso do outro que ganha sentido no gesto do outro, it’s a chain reaction dizem os filósofos rappers. Que coisa incrível se consegue fazer em grupo quando não se tem preguiça ou se reclama, mas há humildade, bem já sabia minha vó.

Lindo também é o silêncio, poucos diálogos e pouca reconstrução forçada do narrador rosiano, mas profusão de imagens e cores desencadeadoras de todas as emoções que os homens de boa vontade estiverem dispostos a sentir. Sentidos disparando por todos os lados, dói não conseguir pegar todos, mas sempre uma bala atinge seu coração e você sangra todo feliz.

Nunca se surpreenda, sempre reconheça, veja como familiar.

Tom professoral, sou tua escrava não, mas num foi hoje que te superei, haha.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Paixão: a infância da humanidade




No fundo, acho que gostei de “Deixa ela entrar”. Tenho pavor de filmes de terror e dessa vez não foi diferente: a visão da menina monstro principal me dava arrepios; o horror e o susto de ser violentamente atacado quando menos se espera; as mortes hediondas, lentas e torturantes, litros de sangue se esvaindo inutilmente; e ainda o desprazer da figura ser parecida fisicamente comigo, olhos grandes e fundos, cabelos escuros armados. Resultado: a noite que era pra ser de sono virou uma longa jornada quase sem vitória. Mas quando o dia finalmente chegou com um pouco de racionalidade (ou seja, aquela deliciosa impressão ilusória de que está tudo sob controle) senti que o terror era só uma introdução e que o aprendizado a se obter dali não era pouco.

Eli (olha o nome, na trave do meu, ai) é uma menina vampira. Mas o filme é bem trabalhado nas sutilezas e sensibilidade, daí sua caracterização não se valer dos clichês desse tipo de personagem. Eli vai se construindo diante dos nossos olhos, que a princípio se afeiçoam à sua aparência frágil com potencial macabro, até que a segunda parte dessa personalidade intrigante venha finalmente à tona. A menina tem “doze anos há muito tempo”, sua fraqueza é superficial, ela é completamente consciente de seus atos e põe sua necessidade de se satisfazer acima de qualquer coisa.

Sua sabedoria a leva a se aproximar de Oskar, que tem doze anos reais e está moralmente muito debilitado com a separação de seus pais e a zombaria dos garotos da escola. Logo, a estranha e noturna Eli se torna sua única amiga e ele, seu total dependente afetivo.

“Deixa ela entrar” é o nome pois deve-se autorizar a entrada de Eli na casa, não sendo convidada e invadindo o espaço, ela morre. Daí a ideia de responsabilidade que o sujeito que deixa ela entrar deve ter sobre o que é desconhecido, sobre sua paixão, sobre seu medo e seu sentimento – coisas que o permissivo Oskar ainda é incapaz de medir e Eli bem o sabe. A vampira trabalha pra transformar a fragilidade temporária do menino em permanente.

O terror e as mortes horríveis do filme servem de mera ilustração pro perigo real do mal e da manipulação. Eli induz Oskar racionalmente a escolher se vingar e a ser violento e depois o deixa em um caminho sem volta: ele terá sempre que ser assim se amá-la, pois ela vive por sangue.

Apesar de tudo, o vampirismo ainda é opção: uma das vítimas sobreviventes de Eli se torna vampira, mas no real altruísmo, a mulher abdica à vida, sabendo que sua condição é inescapável, trará o mal e o constante descarte de pessoas.

Eli é conscientemente má, incapaz de amar, manipuladora, experiente; e seu apaixonado lhe faz contraste: Oskar é indefinido, sem objetivos, é capaz de amor verdadeiro mas é tão inconsciente de si mesmo que não teve responsabilidade na escolha do ser amado. A maldade de Eli está em se aproveitar da fraqueza de seu protegido pra lhe cobrar favores futuros, como lhe arranjar vítimas, acobertar os crimes, etc.

A maioria das críticas sobre o filme o classifica como história romântica com vampiros, e o compara (para exaltá-lo) com "Crepúsculo". À primeira vista, não me ocorreu tal ideia, a atmosfera era de tamanho peso e terror que nem lembrei da cafonice desses filmes de vampiros teen, pensei que Eli poderia ser uma assassina mesmo, um animal, etc. Mas a metáfora de vampira é ótima: um semi-humano, uma alma penada, um morto, sem sangue nas veias, que suga a vitalidade de quem é humano; se alimenta de seus erros, de seus pontos fracos - como o apaixonamento inconsequente de Oskar, por exemplo. O mal acabou com o que havia de humano em Eli, para ela nada está acima de sua satisfação pessoal, tudo pode ser corrompido, não há nada interditado ou que mereça sua reverência.

Eu, que mesmo parecendo o monstro abandonei o mal esses tempos pois o crime não compensa, digo: o estado único da paixão é o início das delícias e dos perigos do envolvimento, é a porta de entrada, mas o amor verdadeiro cobra a necessidade de sua superação para que todos possam viver com alguma saúde mental e civilidade.

E enfim, pode ser minha visão viciada, mas todos os filmes que vi na mostra do Sesc falaram dos apaixonados que cegamente acreditam numa suposta nobreza pura em seu sentimento e fazem o mal, ou mesmo besteiras pra se arrepender. “500 dias com ela” fala de forma divertida sobre como se apaixonar te faz achar imbecilmente que a outra pessoa tem a obrigação única de te fazer feliz mesmo que você não valha a pena, “Ervas daninhas” mostra a inconseqüência do apaixonamento como desencadeadora dos fatos mais nonsense da vida, “Antichrist” fala sobre os perigos do auto-desconhecimento e do desconhecimento do parceiro no âmbito da profunda intimidade que atinge um relacionamento, e “Se nada mais der certo” discute os efeitos que a falta de responsabilidade sobre uma visão de mundo pessimista e enfraquecedora dos sujeitos aliada à manipulação das paixões pode trazer à vida e às identidades das pessoas. O desafio do homem atual ainda é assumir a responsabilidade pelo que parece incontrolável, pois toda a realidade é construída e construível, e a existência de alguma incoerência sempre vem fazer cobranças às nossas consciências.

Sim, tá meio difícil esses tempo de superar o tom Berater e a auto-ajuda burguezona, mas ponho o texto aí como documento da história das ideias de elis piera rosa nesse seu estranho ano de 2010, pra isso pelo menos serve. Claro, pra variar tava escrevendo um artigo com prazo estourando e parei pra fazer essa resenha; graças a deus que já falei de todos os filmes assim não corro o risco de perder mais tempo escrevendo sobre cada um, só pra procrastinar. E viva a escrita! Escrever é minha casa mesmo e o filho pródigo aqui a ela retorna amém.

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Fiona Apple, a máquina extraordinária mostra todos os seus mecanismos



As visões que as pessoas têm sobre a tristeza me atraem, desde criança. Eu não era triste, mas via aquilo como a matéria-prima das coisas que me sensibilizavam: canções, romances, pinturas – a beleza gratuita se vertia em reflexão. Os estados obscuros de alma eram encantadores, apareciam como a crítica mais acirrada a nossa obrigação social de felicidade e produtividade. Assim, de certo modo, ficava muito insatisfeita de ver a vida fora da arte, sempre tão superficial. Brinco de procurar nas relações esse conhecimento do pior e mais profundo no humano, mas acho que ele está (com real sinceridade) no lugar onde eu o encontrei originalmente. Freud tem razão por identificar uma massa estranha e disforme sob toda máscara humana – só não concordo que ela seja completamente dominada pelo impulso sexual. Digamos que, aí, mora meu interesse pior, mais inútil e (provavelmente, por isso) mais essencial à minha personalidade.

Não há nada tão estranho quanto encontrar a tristeza e a loucura, que todo mundo precisa esconder, bem escancaradas na plataforma midiática mais hipnotizante e acessível: a música pop. Ainda mais se elas forem declaradas por uma jovem bonita, frágil e sensível – que parece em luta constante pra fugir dos desígnios que o mundo teria para alguém com a sua bela aparência. Um combate sem fim entre ser e parecer é Fiona Apple. Filha de pais nunca casados, estuprada aos doze anos, seu sucesso não existiu apesar de sua tristeza e inconformismo – ela faz visível a presença de seus monstros.

Fiona foi um pouco mais além da slacker generation dos anos 90 – esta última, consumidora de uma indústria fonográfica monstruosa (notável nos vampiros apelativos Kurt Cobain e Smashing Pumpkins), que se alimentava da insegurança e depressão tão comuns nos adolescentes. A cantora sobreviveu à onda do show business de glamorização e/ou banalização do suicídio, preservando a autenticidade da sua voz. Seu discurso de 1997, quando da entrega do prêmio na MTV (“This world is bullshit”), atesta uma consciência exacerbada de si mesma e do ambiente de comércio de sonhos e comportamentos em que está, de um modo bastante desagradável.



A maturidade precoce de Tidal (1996), aprofundada em When the pawn... (1999) – cuja pretensão se estampa no título, um poema de 90 palavras –, são promessas cumpridas na força de sua voz grave e em sua mão pesada ao piano. Mesmo já firmada num alto nível, Fiona supera a si mesma e à sua geração com Extraordinary Machine (2005), seu melhor trabalho.

A história da concepção do disco, mais uma vez, é dramática: a bela cantora versus suas feias e instigantes fraturas expostas. Escrito ao término do relacionamento com o cineasta Paul Thomas Anderson (de Magnólia, 1999, que assisti voluntária e involuntariamente tantas vezes em 2005) e produzido pelo amigo Jon Brion, o trabalho estava pronto desde 2003, mas fora engavetado por Fiona (que não gostou do resultado geral). Na época, os fãs fizeram o movimento “Free Fiona”, inflamados pela declaração de Jon Brion de que a gravadora se recusou a lançar o disco por falta do apelo comercial nas músicas. O movimento serviu para “livrar Fiona dela mesma”, e ajudá-la regravar todo o disco com uma nova concepção e sob a produção de Mike Elizondo.

A versão de 2003 vazou na internet e foi aclamada, vista como melhor que a original. Há poucas diferenças entre as duas, as mais visíveis estão nas faixas “Not about love”, “O’Sailor” e “Red, red, red”. A influência do cinema, presente em canções que se assemelham às trilhas de cenas (acirrando a tensão, tristeza, comicidade), é mais intensa, mas a voz de Fiona parece rasgada, dura e contrariada. “Red, red, red”, minha canção favorita, também me dá medo e jorra informações excessivas de um interior perturbado, que ninguém gostaria de expor a público, ou mesmo não conseguiria traduzir tão bem em letra e canção. A música tem um tom suspense, de “filme noir”, mas o desagrado da cantora é indisfarçável. Na versão de 2005, ela trabalha pra retirar todo o elaborado arranjo, focalizando na interpretação de sua voz. Achei intrigante a passagem pelos dois extremos, e o certo peso que ainda permanece na letra da canção.

Fiona transforma o lugar comum do fim de um relacionamento amoroso num pesadelo, num grito de revolta, numa piada pra sorriso amarelo. Ao contrário da confiança da letra de “Sleep to dream” (que trata do mesmo assunto), em Extraordinary machine, a cantora vai ao fundo do poço com muita coragem, converte o apático deprimido em um instigante, ativo e perigoso revoltado. A perda do amado é amargada, visível até na mudança de fisionomia da cantora – que teve sua imagem moldada pela direção dos clipes feita pelo ex-namorado, constituiu uma parceria criativa com ele em cenas de Magnólia, e agora se vê obrigada a reconstituir sua arte novamente sozinha. E consegue o fazer, bem melhor do que antes.

Fiona, pra mim, sai da atribuição lugar comum sempre feita às mulheres: ou são santas ou putas. A santa é bela mas boba, não sabe de seu poder. A puta tem a consciência extrema desse poder, mas, por vezes, se deixar dominar por ele. Fiona é bruxa, ciente dos elementos que constituem seu mundo, ciente de sua necessidade da existência de seu lado bom e do ruim; sabendo que, ao se expor, deve ser coerente com estas duas partes. Contudo, a cantora não esconde sua inabilidade para a harmonia: do desequilíbrio, surge o seu melhor. Fiona é conscientemente desagradável, dissonante, como sempre foi e será a realidade.